Efeméride

DEA CONTI


Conheci Carlos Eugênio Clemente em 2002, quando passamos a fazer parte do mesmo grupo de discussão política, o Grupo de Itaipava, posteriormente batizado LS XXI (Liga de Socialista do Século XXI). Tornamo-nos amigos e companheiros, ligados por muitas afinidades no campo das ideias e também da política, enquanto esfera primordial da ação humana.

Chamada a dar um depoimento sobre Carlos Eugênio Clemente,  imediatamente lembrei-me de um texto enviado por ele ao nosso grupo, no início de janeiro de 2005. O texto foi resposta a uma série de e-mails trocados pelos integrantes do grupo, por ocasião da passagem de ano. Lembrei-me dele porque uma das coisas que mais admiro em Carlos Eugênio é a coerência. A coerência de sua vida e de suas ideias.

Dessa forma, ao invés de falar sobre Clemente, prefiro deixá-lo falar, já que seu próprio discurso diz muito mais sobre ele que qualquer depoimento.





Caros Inquietos e Inquietas,


Não sou dado a efemérides, portanto não esperem de mim nenhum desejo de feliz isso ou aquilo, tão comum em cada fim-de-ano. Só sei que no domingo passado a "Turma do Didi" continuou passando na Globo, o "Faustão" continuou berrando em nossos ouvidos e apresentando vidas desinteressantes de pessoas desinteressantes, causando boa parte das angústias que acometem os brasileiros nas tardes que antecedem a segunda-feira, e o grande filme que inaugurará a programação de férias da Vênus PLatinada, será "Xuxa e os Duendes". Portanto, tudo continua na mesma, apesar dos sete pulinhos, das cores escolhidas para a passagem de ano, das sementes de Romã, etc...

Também não sou dado a levar ramos de flores na Alameda Casa Branca para lembrar de Carlos Marighella. Acho sim, que a melhor maneira de honrar a memória do Mariga (é assim que nós, informalmente, chamávamos nosso Comandante na época), é estudar e discutir suas propostas de maneira crítica, sem tratá-lo como semi-deus, detectando as propostas incorretas, os erros de concepção e de encaminhamentos, assim como os acertos. Estudar as diversas propostas de cada Organização, da mesma maneira.

Na própria ALN, Organização à qual tenho a honra de ter pertencido, apresentava mais de uma concepção de luta, a começar dos dois principais dirigentes, Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, passando por companheiros das primeiras horas de fundação do então denominado "Agrupamento Comunista de São Paulo", como Agonalto Pacheco, Rolando Frate e muitos outros. Havia desde os primórdios, tendências mais imediatistas, que acreditavam na força e na eficácia da "Propaganda Armada", achando que poderíamos criar uma instabilidade política que viesse a provocar um vazio de poder que nos permitisse um rápido avanço, mesmo no caso de lançarmos uma "Coluna Guerrilheira" no campo. Vide a captura do Embaixador Norte-Americano.

Marighella e outros do "Agrupamento Comunista", no princípio, acreditavam numa luta longa, e achavam que as ações nas cidades faziam parte da preparação da "Guerra Revolucionária", que só começaria com a construção de uma estrutura de apoio, enraizamento de militantes, e finalmente o lançamento de uma "Coluna Guerrilheira" no campo (para entender melhor esse período, é importante ler, no jornal "O Guerrilheiro n°1", a declaração do "Agrupamento" e mais alguns documentos da época). Uma das maiores qualidades do Mariga, o saber impulsionar as pessoas, dar responsabilidades, atrair os jovens, acabou por provocar, no meu entender, os primeiros equívocos dos caminhos inicialmente traçados. Até como testemunho próprio, eu que na época tinha 16 anos de idade, e todos os militantes do Rio de Janeiro (o corpo central da ALN no Rio, foi formada no Movimento Secundarista), fomos tomados de otimismo com as primeiras vitórias e começamos a enxergar na tática de luta a própria estratégia da Revolução. Sem perceber que nas cidades estávamos totalmente cercados política e militarmente, subestimando o poder da Censura, abandonávamos nossos vínculos políticos com a sociedade e partíamos cheios de orgulho para as ações armadas. Estas, têm um apelo muito forte, pois vemos a vitória imediatamente, medimos o resultado instantaneamente, ao contrário do trabalho de formiga, o de conscientização e organização, aquele que acumula forças.

Nesse sentido, acho oportuno citar Luiz Afonso Miranda Rodrigues, o "Girafa, ou Nei", no Rio de Janeiro, e Leonel Itaussu e outros mais, em São Paulo, que tentaram, em luta interna fraterna, alertar para o beco sem saída em que estávamos nos metendo. Em que daria o processo de luta caso esses erros não tivessem sido cometidos? Não recomendo a ninguém tentar descobrir isso, pois seria mera perda de tempo. Mas podemos aprofundar o estudo da época para tirarmos cada um suas conclusões, e tratar a História como ela deve ser tratada: laboratório de estudos para preparar o futuro.

Outro grande erro que cometemos foi abandonar a prática teórica.

"...Pra quê discutir se já sabemos o que fazer?..."

E enveredamos pelo caminho do emburrecimento coletivo. Perdemos a capacidade de tomar medidas políticas para enfrentar as novas realidades. Por isso me preocupo quando ouço alguns dizerem:

"...O Grupo de Itaipava tem de partir para a prática..."

Como se a prática do estudo e da discussão fossem sinais de imobilismo. Gostaria de alertar os companheiros, que na verdade essas são as práticas mais difíceis e árduas de serem mantidas, e o problema é que são, ao mesmo tempo, as mais necessárias.

Alerto que não se trata de um libelo contra atuações em movimentos em andamento na sociedade. Porém considero de suma importância definir cientificamente esses movimentos. Por que participar de movimentos? Para conscientizar e acumular forças. Acredito que movimentos diferentes acumulam forças diferentes. O desmantelamento do Movimento Sindical e sua caminhada para o modelo norte-americano, corporativista, meramente econômico, movimento para si mesmo, e etc., nos demonstra o que acabei de levantar acima. A construção do PT através das Comunidades de Base da Igreja Católica, o Movimento Sindical do ABC e os arrependidos da luta armada, também demonstra. O Movimento Tortura Nunca Mais é outro exemplo de tudo isso.

Uma coisa em comum entre os exemplos que citei: todas são forças (Centrais Sindicais, Pt e MTNM) que tentam de todas as formas evitar o tipo de discussão que nós, Grupo de Itaipava, Inquietos, queremos fazer sobre a época da ditadura e da Guerra Revolucionária desencadeada em 1967. Segundo eles, só podemos falar de corpos, de crimes da ditadura, de como nós fomos vítimas, jamais da luta, e de que aquela luta foi para tomar o poder e construir o socialismo, e não apenas pelas liberdades democráticas. Mera coincidência? Ou acordo de classes, organizações e credos para mais uma vez barrar as transformações de que nosso país precisa?

Quero demonstrar meu respeito por aqueles e aquelas que militam no campo das liberdades civis e no desvendamento dos crimes da ditadura. Porém, como dizia o Tim Maia, "...uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa...". Eu, pessoalmente, milito em outro campo, no campo que quer aprender com os erros das lutas dos socialistas e comunistas do Século XX, para ajudar a traçar os caminhos para saber:

1) O que será o socialismo no Século XXI?

2) Como traçar uma Estratégia de Poder e acumular forças para colocá-la em prática?

Portanto, acho válido criar movimentos para a abertura dos arquivos do militares, aliás, nas páginas amarelas da revista Veja de 28/07/1996, eu já denunciava isso e exigia a abertura dos arquivos. E sem essa de que os arquivos foram queimados, militar sempre guarda uma cópia. Alerto também para o tipo de posição do direitista travestido de esquerda chamado Ferreira Goulart (sem nenhum julgamento à sua obra poética), que encontra eco em muita gente por aí. Aviso aos meus companheiros que se um acordo desse tipo for feito, prender gente dos dois lados, alguns dias antes (não digo quantos, por motivo de segurança) eu entro na clandestinidade, e não preciso explicar porque.

Por acreditar que esse tipo de movimento não acumula o tipo de forças que nos interessa acumular, não quero participar dele e nem acho que o Grupo de Itaipava deva despender esforços em tal luta. Nosso GI deve investir em estudo, formação, produção de textos e construção de nossa Revista, para ajudar na elaboração de uma nova linha política para a esquerda brasileira. Aparecendo movimentos que contribuam nesse sentido, devemos analisar e decidir a participação individual ou coletiva do GI.

Espero que não achem que estou ficando esclerosado por repetir mais uma vez: é no meio dos chamados excluídos (dos pontos de vista econômico, social e político), das tribos de periferia, que devemos acumular forças. Como chegar lá? Nossa tarefa é descobrirmos juntos, usando nossas experiência, sensibilidade e criatividade. Claro que não devemos abandonar a classe média, mas lembrando que historicamente a maioria dela acaba se aliando com o grande capital. E temos tanto a estudar sobre os que hoje vendem sua força de trabalho sem CLT, na base da prestação de serviços.

O Império está em ofensiva, nós estamos na defensiva. Mais importante ainda o uso da prática teórica para descobrir caminhos de atuação.

Já tornei-me longo em demasia, mas é que há muito a levantar e discutir. Mas sem efemérides, por favor.

Um grande abraço,
Carlos Eugênio Paz

03/01/2005

Um comentário:

Bety Cereja disse...

A companheira tem razāo: esse texto é mesmo do Clemente, pois as idéias de hoje já estavam lá atrás. Há coerência e nenhum oportunismo nessa candidatura de Carlos Eugênio Clemente. Avante, camarada!